Gyorgy Ligeti foi um dos mais importantes compositores
vanguardistas da segunda metade do século XX. Personagem controversa, a sua
música revela uma componente criativa extraordinária onde a riqueza de texturas
e materiais proliferam à luz de elementos irónicos, paradoxais, misteriosos,
grotescos, por vezes, leves e melancólicos, por vezes, densos e perturbadores. Influências
artísticas vindas da literatura, dos enigmas da ciência, das visões de
Hieronymus Bosch, do realismo de M.C. Escher, de puzzles, da teoria do caos, da
complexidade matemática, dos aspetos estimulantes e contraditórios da cultura
musical do Caribe, da África Central e do Leste asiático. Definir a música de Ligeti
seria contradizer a sua própria essência, que reside na busca do desafio à
categorização e às fações ideológicas. Ligeti sempre resistiu a pertencer a um
movimento orientado por regras e parâmetros rigorosamente estabelecidos. Para
ele, a emoção e o intelecto são unos – esta dicotomia não existe. Suspeitava do
sistema e preferia procurar a evocação e a modulação do som de uma forma
directa e construtiva, querendo atingir novas ‘complexidades’ na música. Não
são as ideias que importam, mas a música em si.
Nasceu em 1923, no seio de uma família judia, em Dicsõszentmárton,
numa zona da Transilvânia húngara que tinha sido cedida à Roménia em 1918. Ligeti
lembra-se que o seu primeiro contacto com outras línguas para além do húngaro
foi quando ouviu a conversa de dois polícias romenos mal tinha 6 anos. Recebeu
os seus primeiros estudos de música no Conservatório de Cluj, onde estudou
composição com Ferenc Farkas, e durante o Verão, em Budapeste, com Pál Kadosa.
Em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, foi enviado
para um campo de concentração. Depois da guerra, Ligeti voltou aos seus estudos
de música em Budapeste, onde se licenciou em 1949 na Academia Franz Liszt. No
ano seguinte, começou a dar aulas de composição na Academia.
A Hungria era um Estado estalinista, onde cabia o papel
aos artistas, incluindo compositores, de glorificar o Estado nos seus trabalhos.
Ligeti virou-se para o estudo do folclore húngaro e romeno, enquanto escondia
das autoridades as suas composições mais criativas e vanguardistas.
Musica Ricercata
Esta obra é uma série de 11 peças para piano. Cada peça
acrescenta uma nota da escala cromática e, assim, encontramos os 12 sons do
temperamento igual na peça no.11. Composta entre 1951 e 1953, mas só estreada
em 1969, na Suécia. O título da obra sugere uma ‘música de procura’ ou a ‘busca
da música’. Encontramos nesta obra o presságio de alguns parâmetros
estilísticos que Ligeti desenvolverá no futuro.
Em 1956, depois da revolução húngara ter sido
horrificamente esmagada, Ligeti foge para o Ocidente, conseguindo chegar a
Viena no final desse ano. Ao chegar a Colonia, começou a compor música
eletrónica junto a Karlheinz Stockhausen e Gottfried Michael Koenig
no estúdio eletrónico do Westdeutscher
Rundfunk (Rádio da Alemanha Ocidental). Completou apenas dois trabalhos
neste meio – Glissandi (1957) e Artikulation (1958).
Artikulation
No entanto, no final de três anos, Ligeti deixa essa ‘escola’
de Stockhausen e Kagel, julgando-a demasiado dogmática e limitada a facções
conflituosas. «Era uma companhia de, mais ou menos, bons amigos no meio de
muitas intrigas, rivalidades e jogos de poder que nunca me interessaram.»
(Ligeti)
Contudo, subsequentemente, a sua música foi influenciada
pelas suas experiências de música electrónica, tentando criar nas suas
composição ‘texturas electrónicas’. E foi neste contexto que surgiu Apparitions (1958-59), que estabelece um
novo caminho composicional. Nesta obra para orquestra, Ligeti traz uma
alternativa ao paradigma do serialismo que reinava todos os meios musicais do
Ocidente. Porém,
é na peça orquestral Atmosphères
(1961) que Ligeti explora a fundo os novos recursos e materiais.
Atmosphères
Ligeti
introduz a noção de permeabilidade na música – uma estrutura musical é indicada
como ‘permeável’ quando permite a escolha livre de intervalos e ‘impermeável’
quando não (como as regras de contraponto e de harmonia). Mas a permeabilidade
e a impermeabilidade também podem ser características de textura, em vez de
harmonia. E é através desta procura dentro da textura que encontramos a
combinação de materiais densos, gelatinosos e suaves com secos, brutos e
ruidosos. Em Atmosphères, já não
existe qualquer tentativa de lidar com unidades de altura, duração, dinâmica ou
timbre. É criada a técnica de micropolifonia
- o movimento rítmico é eliminado por cambaleantes e titubeantes entradas
instrumentais, realçando a
sustentação de sons e ignorando qualquer sentido de pulsação – a harmonia fica
suspensa quando se formam clusters (onde se conjugam todas as
notas da escala cromática no intervalo de cinco oitavas). Esta é a criação de efeitos
de continuidade, elementos que deslizam e evoluem lentamente – a experiência do
som como textura.
«Há
disposições específicas e predominantes de intervalos que determinam a direcção
da música e o desenvolvimento da forma. A polifonia complexa (…) está
incorporada num fluxo harmónico-musical, no qual as harmonias (…) não mudam de
repente, mas fundem-se umas na outras - uma combinação de intervalos
discernível torna-se gradualmente turva, e desta nebulosidade é possível obter
uma nova combinação intervalar tomando forma.» Gyorgy Ligeti
Poema sinfónico para 100 metrónomos
Esta
obra, criada em 1962, foi um verdadeiro escândalo. Os 100 metrónomos têm todos
tempos diferentes, começando todos ao mesmo tempo. Progressivamente, os
metrónomos vão parando um a um, sendo possível distinguir periodicidade e o
movimento de metrónomos individuais. O último metrónomo permanece por algum
tempo sozinho até terminar a música no silêncio. Aparecendo do caos sonoro,
apercebemo-nos de uma contínua mudança da sonoridade, que se sujeita a uma
metamorfose lenta, como um morphing.
O efeito torna-se quase hipnótico. O metrónomo tem a conotação de um
instrumento que permite o rigor na música e, aqui, é colocado como provocador
de caos na música.
«O
que me incomoda hoje em dia são sobretudo as ideologias (todas as ideologias,
por serem inflexíveis e intolerantes umas com as outras), e Poème Symphonique é direcionado, a cima
de tudo, contra elas. Por isso, estou, de uma certa forma, orgulhoso de poder
ter conseguido expressar crítica sem qualquer texto, mas apenas com música.»
(Ligeti)
Concerto de câmara
Esta
peça foi composta para flauta, flautim, oboé, oboé d’amore, corne inglês,
clarinete, clarinete baixo, trompa, trombone, cravo, órgão Hammond, piano,
celesta e quarteto de cordas. No Concerto de Câmara (1969-70), vários planos,
processos e tipos de andamento são misturados simultaneamente como uma
construção em diferentes camadas. Os padrões tremulamente repetidos, a
incessante repetição de pequenos fragmentos, criam uma indefinição onde se
processa um movimento gradual da harmonia, ora obscurecendo, ora formando
brilho cristalino, e a utilização de microtons
infiltra uma sensação de dúvida e incerteza. Torna-se como a construção de um
puzzle, ou até de uma máquina. Ligeti fascinava-se com o mundo da tecnologia e
da automatização e, especialmente, com as máquinas que não trabalham
correctamente. Os sons de máquinas não confiáveis aparecem na ‘manufaturação’
desta obra.
Clocks and Clouds
Clocks and Clouds
(1972-73), para orquestra e vozes femininas, já não apresenta as diferentes
texturas sonoras separadamente, trazendo ambiguidade à natureza sonora. Dois
tipos de textura, a cor estática dos clusters e os marcatos e precisos sons
desfasados, combinam-se e crescem um do outro – como um fluxo entre relógios e
nuvens.
Sonata para Viola
A
Sonata para Viola solo (1991-94) de Ligeti transparece um lamento denso e
pesado sobre a violência cega que marcou o século XX, como se fosse uma voz
humana a meditar no vazio, um espírito que respira na escuridão e procura a
salvação. A obra expressa tristeza e raiva perante o absurdo e a realidade
paradoxal dos tempos modernos.
Le Grand Macabre
Esta
obra é considerada uma ‘anti-opera’, onde Ligeti introduziu novos timbres
instrumentais e processos como colagens, citações de temas e fragmentação, de
maneira a criar um mundo dominado pelo sentimento amargo de algo misterioso e
estranho no meio de um absurdo grotesco. Neste mundo onírico, revela-se uma
profunda meditação sobre as absurdidades macabras da história do século XX. A
história é baseada numa peça de teatro de Michel de Ghelderode, e a ópera foi
estreada em 1978.
Estudos para Piano
Uma
série de estudos para piano escrita durante os últimos vinte anos da sua vida,
tal como as mazurkas de Chopin,
revolucionou diversos aspectos na abordagem do piano, criando novos tipos de
sonoridade nunca dantes explorados no instrumento. Os estudos revelam uma
grande complexidade rítmica que se baseia na música para piano do Romantismo,
como Chopin e Liszt, e na música indígena Subsariana, que introduz uma
importante componente polirrítmica.
Síppal, dobbal, nádihegedüvel
Para
Ligeti, a inovação e a tradição não se excluem. Assim, surge uma das suas
últimas obras Síppal, dobbal, nádihegedüvel (2000), na qual é representada uma
síntese de música folclórica, tradicional, e elementos vanguardistas. Este
ciclo de canções húngaras apresenta um ensemble pouco comum – mezzo-soprano,
percussão e instrumentos de sopro como harmónicas e apitos. O texto do poeta
húngaro Sándor Weöres combina húngaro com palavras inexistentes, criando
sentidos aleatórios e confusos, mas, deste modo, criando um novo tipo de
linguagem mitológica descrevendo universos inexistentes e multidimensionais.
«A
língua húngara é extremamente prática para poesia, porque podemos usar a
estrutura rítmica e métrica de diversas maneiras. (…) Eu estou profundamente
conectado com esta maneira de pensar com o húngaro.» (Ligeti)
«I'm not thinking in general philosophical or
ideological methods or patterns or strategies. I have no strategy at all. It's
about writing a composition and then I am concentrating on a composition and I
have certain constructive ideas. It's not only naïve, it has to be consistent -
not consistent as mathematics, consistent as a natural language. And this
applies for a certain piece and then I am ready with the piece, and then comes
the next piece where I revise my working method. I'm not thinking in party politics.(…)
I'm extremely curious in many, many things.(…) Just... like interested in 'what
is life?' »
(Transcript of the John Tusa Interview with Gyorgy
Ligeti, BBC Radio3)
Ligeti
morreu em Viena a 12 de Junho de 2006.
Bibliografia
The John Tusa Interviews,
BBC Radio3 - Transcript of the John Tusa Interview with Gyorgy Ligeti
Modern Music and After, Paul Griffiths
György Ligeti, Paul Griffiths
Music in The Late Twentieth Century, Richard Taruskin (The Oxford History of Western Music)
The New Grove Dictionary of Music and
Musicians
Gyorgy Ligeti, Central-European Composer
of Bleakness and Humor, Dies at 83, Paul Griffiths, Published: June 13, 2006 - The New York Times
Gyorgy Ligeti - Innovative composer of
genius, Paul Drive, Published: June 13, 2006 – The Independent
Gyorgy Ligeti - Pioneering Hungarian
composer known, like Pierre Boulez, as the conscience of contemporary music, Stephen Plaistow, Published: June 14, 2006 - The Guardian
"Ligeti, György", Contemporary Musicians - Encyclopedia.com. - May 20 2012
Autoria
Rita Novais